Ele nasceu na década de 30, um menino esperto e arteiro numa
fazenda de café no interior paulista, onde o pai era o administrador. Teve uma mãe alcoólatra e um pai
austero. Ainda muito novo, na idade que as crianças de hoje nem sabem amarrar
cadarços, já saia para trabalhar na roça e ajudar no sustento dos irmãos.
Cresceu trabalhador e contador de causos, virou um homem muito à frente do seu
tempo...
Dos causos que contava lembro-me bem de dois em especial.
Num deles, na fazenda vizinha, que tinha uma bela plantação de melancias,
alguém entrou para roubar algumas frutas e estragou outras por maldade pura. Ele,
conhecido pelas suas peraltices, foi logo acusado pelo fazendeiro e seu pai,
aquele austero, lhe deu uma surra sem chances de defesa. Magoado (diria mesmo
que indignado com a injustiça, marca que iria acompanha-lo a vida toda) voltou
na fazenda e deu conta de destruir o que sobrou das frutas, apresentando-se em
seguida ao pai dizendo: - Agora fui eu, agora pode me surrar que dessa vez será
justo! Nessa época contava 9 anos! Passei a vida imaginando aquela criança na
plantação de melancias em busca de justiça.
Noutra ocasião, aquele menino que nunca tinha tido um
carrinho, viu uma promoção de cigarros que daria como brinde uma cigarreira
para quem juntasse um número x de maços vazios. Naquela época os cigarros eram
entregues nas vendas por pequenos caminhões, que as pessoas apelidaram de
cigarreiras, mesmo nome das carteiras usadas para guardar os maços. Por semanas
ele buscou maços vazios no lixo, imaginando na sua inocência que ganharia um
pequeno caminhão de brinquedo, mas qual não foi a sua decepção quando o brinde não condizia
com seu imaginário. E mais uma vez o austero pai lhe surrou sem permitir
explicação, acreditando que o filho ainda muito novo estava às voltas com aquele
vício...
Essas pequenas histórias me cortavam o coração quando ele
contava, muito embora a narrativa não contivesse nenhuma pontinha de dor... eram
pra ser engraçadas espelhando aquele bom humor que ele sempre tinha estampado
no rosto e nas mesmas piadas de sempre.
Todo almoço a gente já sabia, lá vinha ele com a piada da
ligeireza, uma piadinha sobre uma senhora que saía de casa sem calcinhas e
escorregava na frente de um bar, rapidamente ela levanta arrumando o vestido e fala pro
matuto que estava parado à porta “o senhor viu a ligeireza? ” E o matuto
enrolando seu cigarrinho de palha responde “vi sim senhora, só não sabia que
tinha mudado de nome”. E a gente ria, talvez porque era ele contando!
Ah como ele era à frente do seu tempo... Não tendo estudado
sabia que das coisas mais importante da vida estavam os livros. Autodidata, de
todos os assuntos ele sabia um pouco. Contava que seu primeiro emprego oficial havia
sido como vendedor de livros, enciclopédias, coleções, e era um emprego que ele
gostava muito, ia de cidade em cidade no Vale do Paraíba vendendo livros de
porta em porta. Gostava porque viajava, conhecia gente e recebia parte do
salário em livros! “Livros, livros à mão cheia... e manda o povo pensar. O
livro caindo n’alma, é germe que faz a palma... é chuva que faz o mar...”.
Poeta, cantor, dançarino... Declamava Castro Alves, cantava
Adoniram Barbosa e me tirava pra valsar no meio da cozinha! Cozinheiro... Cozinheiro
de mão cheia, de coração cheio! Duvido que quem tenha provado qualquer um dos
seus quitutes tenha esquecido! Duvido! E com que amor ele cozinha pra
filharada, pros amigos da filharada, pros seus próprios amigos! Na cozinha havia
um sofá, era o lugar da casa onde todos gostavam de ficar, ouvindo piadas,
conversando, cozinhando junto, dançando...
Ainda sobre livros, a coleção “Tesouros da Juventude”, joia
rara da minha pequena biblioteca, era o pivô dos nossos momentos mais prazerosos,
era lá que tirávamos todas as nossas dúvidas, bastava uma pergunta e lá vinha
ele com um dos volumes em mãos, esclarecendo o que queríamos saber, auxiliando
no trabalho da escola, ajudando-nos a construir nosso conhecimento sobre o
mundo! Ah Google, você jamais saberá o quão belo e ricos eram esses momentos!
E quantas coisas aprendemos com ele, quanto da vida ele soube
nos mostrar com tanto carinho e com olhos tão doces apesar de todo amargo que
vida lhe deu pra provar. Corajoso, dizia que coragem não era ausência de medo,
ausência de medo era loucura! Coragem é ter medo e enfrentar esse medo... foi
assim que aprendi a “ir” com medo mesmo, com coragem... e um pouquinho de
loucura.
Por sinal minhas melhores memórias incluem algumas loucuras, e um
tanto de coragem. Lembro dos banhos de rio, de cachoeira, dos passeios no mato,
dos pic-nics e dos passeios sem destino certo. A gente tem hora pra sair mas
não tem hora pra voltar, dizia ele. Num dos banhos de rio havia uma cobra na
água e ele me salvou, a gente fugiu da bendita e foi muito divertido. Noutra
ocasião o rio era caudaloso e eu, a corajosa, fui levada pela correnteza. Acho
que ali perdi uma das minhas vidas de gata e ele, nadador, me salvou de novo!
Na praia lembro das vezes que ele nadava com a gente nas costas, e além da
arrebentação víamos as pessoas na areia, tão pequenas quanto se fossem formigas.
Com seu binóculo alemão da segunda guerra saíamos pelo mato
afora observando os pássaros, em silêncio. Eu, minha bota sete léguas e ele. Desconfio
que esse meu amor pela natureza veio dessa parte da minha infância, tão
encantadora e quase tão fantástica quanto um conto de fadas. A diferença é que
a princesa dessa história não precisava de príncipe e podia ser tudo aquilo que
ela quisesse ser, era uma princesa incentivada a estudar, ser livre,
independente e feliz! À frente do seu tempo, seu sonho não era levar ninguém ao
altar, mas ao púlpito para receber o diploma. Diploma, tantos foram os que
conquistei, todos dedicados a ele!
E, parando para reler o que já está escrito, vejo que cada
parágrafo desse texto poderia se transformar numa história própria! Tantas são
as que eu poderia contar, tão cheias de detalhes e transbordantes de amor.
Dizem que quando as pessoas partem só conseguimos lembrar do lado bom, que todo
morto vira santo. Deve ser mesmo, ou não... Fato é que poucas são as lembranças
menos felizes, de tão poucas que nem perco tempo alimentando-as pois elas ficariam
com vergonha diante de tanta felicidade que norteou o tempo que compartilhamos
nessa vida!
Pouco tempo, mas que de tão intenso deixou em mim marcas
profundas, de belezas abissais, sob as quais construí a mulher que sou! E da
qual tenho tanto orgulho!
Pai, obrigada por cada dia desses anos todos que compartilhamos a vida... e principalmente
por aqueles que, mesmo já tendo partido, você esteve presente!