quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Um menino da década de trinta...

Ele nasceu na década de 30, um menino esperto e arteiro numa fazenda de café no interior paulista, onde o pai era o administrador. Teve uma mãe alcoólatra e um pai austero. Ainda muito novo, na idade que as crianças de hoje nem sabem amarrar cadarços, já saia para trabalhar na roça e ajudar no sustento dos irmãos. Cresceu trabalhador e contador de causos, virou um homem muito à frente do seu tempo...



Dos causos que contava lembro-me bem de dois em especial. Num deles, na fazenda vizinha, que tinha uma bela plantação de melancias, alguém entrou para roubar algumas frutas e estragou outras por maldade pura. Ele, conhecido pelas suas peraltices, foi logo acusado pelo fazendeiro e seu pai, aquele austero, lhe deu uma surra sem chances de defesa. Magoado (diria mesmo que indignado com a injustiça, marca que iria acompanha-lo a vida toda) voltou na fazenda e deu conta de destruir o que sobrou das frutas, apresentando-se em seguida ao pai dizendo: - Agora fui eu, agora pode me surrar que dessa vez será justo! Nessa época contava 9 anos! Passei a vida imaginando aquela criança na plantação de melancias em busca de justiça.

Noutra ocasião, aquele menino que nunca tinha tido um carrinho, viu uma promoção de cigarros que daria como brinde uma cigarreira para quem juntasse um número x de maços vazios. Naquela época os cigarros eram entregues nas vendas por pequenos caminhões, que as pessoas apelidaram de cigarreiras, mesmo nome das carteiras usadas para guardar os maços. Por semanas ele buscou maços vazios no lixo, imaginando na sua inocência que ganharia um pequeno caminhão de brinquedo, mas qual não foi a sua decepção quando o brinde não condizia com seu imaginário. E mais uma vez o austero pai lhe surrou sem permitir explicação, acreditando que o filho ainda muito novo estava às voltas com aquele vício...

Essas pequenas histórias me cortavam o coração quando ele contava, muito embora a narrativa não contivesse nenhuma pontinha de dor... eram pra ser engraçadas espelhando aquele bom humor que ele sempre tinha estampado no rosto e nas mesmas piadas de sempre.

Todo almoço a gente já sabia, lá vinha ele com a piada da ligeireza, uma piadinha sobre uma senhora que saía de casa sem calcinhas e escorregava na frente de um bar, rapidamente ela levanta arrumando o vestido e fala pro matuto que estava parado à porta “o senhor viu a ligeireza? ” E o matuto enrolando seu cigarrinho de palha responde “vi sim senhora, só não sabia que tinha mudado de nome”. E a gente ria, talvez porque era ele contando!

Ah como ele era à frente do seu tempo... Não tendo estudado sabia que das coisas mais importante da vida estavam os livros. Autodidata, de todos os assuntos ele sabia um pouco. Contava que seu primeiro emprego oficial havia sido como vendedor de livros, enciclopédias, coleções, e era um emprego que ele gostava muito, ia de cidade em cidade no Vale do Paraíba vendendo livros de porta em porta. Gostava porque viajava, conhecia gente e recebia parte do salário em livros! “Livros, livros à mão cheia... e manda o povo pensar. O livro caindo n’alma, é germe que faz a palma... é chuva que faz o mar...”.

Poeta, cantor, dançarino... Declamava Castro Alves, cantava Adoniram Barbosa e me tirava pra valsar no meio da cozinha! Cozinheiro... Cozinheiro de mão cheia, de coração cheio! Duvido que quem tenha provado qualquer um dos seus quitutes tenha esquecido! Duvido! E com que amor ele cozinha pra filharada, pros amigos da filharada, pros seus próprios amigos! Na cozinha havia um sofá, era o lugar da casa onde todos gostavam de ficar, ouvindo piadas, conversando, cozinhando junto, dançando...

Ainda sobre livros, a coleção “Tesouros da Juventude”, joia rara da minha pequena biblioteca, era o pivô dos nossos momentos mais prazerosos, era lá que tirávamos todas as nossas dúvidas, bastava uma pergunta e lá vinha ele com um dos volumes em mãos, esclarecendo o que queríamos saber, auxiliando no trabalho da escola, ajudando-nos a construir nosso conhecimento sobre o mundo! Ah Google, você jamais saberá o quão belo e ricos eram esses momentos!

E quantas coisas aprendemos com ele, quanto da vida ele soube nos mostrar com tanto carinho e com olhos tão doces apesar de todo amargo que vida lhe deu pra provar. Corajoso, dizia que coragem não era ausência de medo, ausência de medo era loucura! Coragem é ter medo e enfrentar esse medo... foi assim que aprendi a “ir” com medo mesmo, com coragem... e um pouquinho de loucura.

Por sinal minhas melhores memórias incluem algumas loucuras, e um tanto de coragem. Lembro dos banhos de rio, de cachoeira, dos passeios no mato, dos pic-nics e dos passeios sem destino certo. A gente tem hora pra sair mas não tem hora pra voltar, dizia ele. Num dos banhos de rio havia uma cobra na água e ele me salvou, a gente fugiu da bendita e foi muito divertido. Noutra ocasião o rio era caudaloso e eu, a corajosa, fui levada pela correnteza. Acho que ali perdi uma das minhas vidas de gata e ele, nadador, me salvou de novo! Na praia lembro das vezes que ele nadava com a gente nas costas, e além da arrebentação víamos as pessoas na areia, tão pequenas quanto se fossem formigas.

Com seu binóculo alemão da segunda guerra saíamos pelo mato afora observando os pássaros, em silêncio. Eu, minha bota sete léguas e ele. Desconfio que esse meu amor pela natureza veio dessa parte da minha infância, tão encantadora e quase tão fantástica quanto um conto de fadas. A diferença é que a princesa dessa história não precisava de príncipe e podia ser tudo aquilo que ela quisesse ser, era uma princesa incentivada a estudar, ser livre, independente e feliz! À frente do seu tempo, seu sonho não era levar ninguém ao altar, mas ao púlpito para receber o diploma. Diploma, tantos foram os que conquistei, todos dedicados a ele!

E, parando para reler o que já está escrito, vejo que cada parágrafo desse texto poderia se transformar numa história própria! Tantas são as que eu poderia contar, tão cheias de detalhes e transbordantes de amor. Dizem que quando as pessoas partem só conseguimos lembrar do lado bom, que todo morto vira santo. Deve ser mesmo, ou não... Fato é que poucas são as lembranças menos felizes, de tão poucas que nem perco tempo alimentando-as pois elas ficariam com vergonha diante de tanta felicidade que norteou o tempo que compartilhamos nessa vida!

Pouco tempo, mas que de tão intenso deixou em mim marcas profundas, de belezas abissais, sob as quais construí a mulher que sou! E da qual tenho tanto orgulho!



Pai, obrigada por cada dia desses anos todos que compartilhamos a vida... e principalmente por aqueles que, mesmo já tendo partido, você esteve presente!